De figura da ignomínia e da
derrota, a Cruz passou a ser o centro da espiritualidade católica, o sinal
distintivo dos seguidores de Cristo, o ponto para o qual convergem todas as
aspirações, todos os amores, toda a ternura e o respeito da alma
verdadeiramente cristã.
Ir. Clara
María Morazzani
A mais conturbada das manhãs de
toda a História
O sol já havia nascido, deitando
o calor de seus raios sobre a praça do Pretório, cujo tribunal, formado com
pedras multicolores, era chamado em grego Lithostrotos, que significa lajedo ou
montículo de pedras. Nada melhor para aquecer-se, sob o calor do sol, do que a
pedra. Nem a água tem a capacidade de guardar os ardores do astro-rei como a pedra.
Debaixo daquela luz criada por Deus, estava o próprio Deus a ser julgado.
Todavia, não eram só as
manifestações minerais que ali se faziam sentir. A ordem da natureza emanada
das mãos do Onipotente, as criaturas inconscientes e sem vida, cumprem seu
desígnio por uma determinação divina. Há seres que possuem livre arbítrio, mas
nem sempre usam retamente desse dom recebido do Senhor de toda a Criação. Pior
ainda, às vezes o utilizam maldosamente em sentido contrário. Ao longo da
História, entretanto, nunca houve tamanha carga de ódio contra o Criador, no
mau emprego do livre arbítrio.
A Cruz que dividiu a História
Naquela praça, sol e pedra
mantinham- se fiéis à ordem de Deus. Porém, um governador romano - que passou
para a História e até hoje é nomeado todos os dias no Credo que rezamos - não
se deixava influenciar pela voz da consciência e da graça no seu interior: ele
não deveria condenar, mas, como todo aquele que relativiza o absoluto da Lei de
Deus, estava querendo encontrar uma solução intermediária entre a condenação e
a adoração.
O povo exigia...
Quantas vezes o povo agiu bem,
pedindo a condenação de um réu! No entanto, se alguma vez o povo errou - e
quanto deve ter acontecido - nunca se equivocou tanto como naquela ocasião. Era
só o povo? Não... Ali estavam os fariseus e os escribas, incentivando todos a
gritar contra o próprio Criador uma sentença, não só injusta, mas deicida:
"Crucifica- O! Crucifica-O!"
Nada fazia calar o populacho, até
um determinado momento em que o símbolo que marcaria mais tarde as coroas e o
frontispício das igrejas, entrou na praça: era a Cruz! A própria figura da
vergonha, da ignomínia e da derrota começava agora sua marcha triunfal através
dos séculos.
Aquela Cruz que seria abraçada e
osculada pelo Divino
Redentor, e com tanto amor carregada nos seus
adoráveis ombros até o Calvário, além de produzir um grande silêncio, fendeu a
multidão de um lado e de outro, revelando simbolicamente qual o seu papel ao
longo da História: diante dela a impiedade sorrirá, a devoção a venerará; à sua
vista uns escarnecerão, outros se prostrarão, uns proferirão palavras de
desprezo, outros derramarão lágrimas de ternura; por sua causa muitos tremerão
de pavor, enquanto outros desfalecerão de amor. Até o dia supremo em que
aparecerá "no céu o sinal do Filho do Homem" (Mt 24, 30), e dividirá
também a humanidade reunida no Vale de Josafá: à direita os que ressurgem em corpo
glorioso; à esquerda aqueles que retomam seus corpos para serem ainda mais
atormentados no inferno. "Separará uns dos outros, como o pastor separa as
ovelhas dos cabritos. Colocará as ovelhas à sua direita e os cabritos à sua
esquerda" (Mt 25, 32-33).
E a cruz figurará para sempre no
esplendoroso trono de Jesus Cristo, transformada de lenho de tortura em árvore
de luz.
O mais humilhante suplício
Entre os homens da Antigüidade, a
crucifixão era conhecida como o mais atroz e humilhante dos castigos - "maldição
de Deus", como nolo refere o próprio Livro do Deuteronômio (21, 23) -
reservado sobretudo aos escravos e também aos malfeitores, assassinos e ladrões
cuja punição pública deveria servir de exemplo para todo o povo. Mais tarde,
com a dominação de Roma, a lei isentava de tal pena os cidadãos romanos, por
mais grave que fosse o seu delito, não permitindo, deste modo, que a dignidade
do Império ficasse manchada. E esta foi, precisamente, a morte que Cristo
permitiu para Si, assumindo a condição de escravo, não só para redimir-nos da
escravidão do pecado, mas até para fazer-nos reis: um suplício usual do código
penal, com o procedimento que era aplicado vulgarmente aos bandidos; sem
dúvida, o pior.
Descrição de um médico
Segundo interessantes estudos realizados
no século passado por conceituados médicos europeus, a morte de cruz possui
como causa determinante a asfixia. Logo após a crucifixão, o condenado
apresenta violentas contrações, generalizadas, o rosto fica violáceo, abundante
suor corre- lhe da face e de todo o corpo, tornando-se especialmente profuso
nos poucos minutos que precedem a morte. Os crucificados morriam, em média, ao
fim de três horas, após atroz período de luta.
Em sua obra "A Paixão de
Nosso Senhor Jesus Cristo segundo o cirurgião", o Dr.Pierre Barbet afirma:
"Toda a agonia se passava na alternativa de abatimentos e soerguimentos,
de asfixia e respiração. Disso temos a prova material no Santo Sudário, onde
podemos assinalar um duplo fluxo de sangue vertical que sai da chaga da mão,
com um afastamento angular de alguns graus. Um corresponde à posição de
abatimento e o outro à de soerguimento. Percebe-se logo que um indivíduo
esgotado, como estava Jesus, não poderia prolongar essa luta por muito
tempo".
O mistério da Cruz
A partir de um olhar humano e
materialista, o Cordeiro imolado no alto da Cruz não passava de um pobre ser
maltratado e injuriado por todos, um homem falido e derrotado para sempre;
debaixo da luz sobrenatural, porém - e esta é a única visualização verdadeira -
Jesus achava- Se ali elevado como um Rei em seu sólio de glória, atraindo para
Si todas as criaturas. Este divino mistério, os Apóstolos, sobretudo São Paulo,
compreenderam-no com profundidade: "Julguei não dever saber outra coisa
entre vós a não ser Jesus Cristo, e Jesus Cristo crucificado" (1Cor 2, 2).
E ainda: "Quanto a mim, porém,de nada me quero gloriar, a não ser na Cruz
de Nosso Senhor Jesus Cristo, pela qual o mundo está crucificado para mim e eu
para o mundo" (Gl 6, 14).
O lento despontar da Cruz
Mas para os primitivos cristãos,
embebidos dos conceitos e tradições antigas, a cruz conservava ainda seu
terrível significado, a ponto de se terem passado vários séculos antes de
aparecerem as primeiras representações do Salvador pregado nela. Tal repulsa
via-se acrescida pelo fato de muitos membros da Igreja nascente terem visto em
Roma parentes próximos sofrer este tipo de martírio, durante as sangrentas
perseguições promovidas pelos imperadores pagãos.
Nos séculos segundo e terceiro,
os fiéis preferiram, pois, adotar a imagem do peixe (em grego Ichthys), como
representação de Cristo. Nesta simbologia, as letras da palavra Ichthys contêm
as iniciais da frase: Iesous Christos Theou Yios Soter (Jesus Cristo, Filho de
Deus, Salvador). A partir do século quarto, após o reconhecimento da religião
católica, por Constantino o Grande, o simbolismo do peixe diminuiu
gradualmente, cedendo lugar à cruz, que começou a aparecer esculpida sobre os
sarcófagos, os cofres e outros objetos, tornando- se o principal emblema da
Cristandade. Uma das primeiras expressões artísticas ocidentais do sacrifício
do Calvário é a famosa porta de cipreste da Basílica de Santa Sabina, no monte
Aventino, em Roma, construída nas primeiras décadas do século quinto.
Foi nessa mesma época que se
instituiu o atual sinal-da-cruz, embora já antes existisse o piedoso costume de
fazer a tríplice marca sobre a fronte, os lábios e o peito, pois as três partes
superiores do homem - inteligência, amor e força - ficavam assim sob a proteção
da cruz.
Da esquerda para a direita: peixes da
Catacumba de Domitila (Roma); monograma cristão do séc. IV (Museus Vaticanos,
Roma); cruz da Basílica de San Vitale (Rávena, Itália); cruz processional
bizantina do séc. XI (Metropolitan, Museum of Art, Nova York); cruz do convento
carmelita de Tri-en-Bigorre (Metropolitan Museum of Art - The Cloisters, New
York)
Santa Helena resgata a verdadeira
Cruz
No início do século quarto, um
inconcebível abandono pesava sobre os Santos Lugares a ponto de achar-se
coberta de escombros a própria colina do Gólgota. Movida por forte impulso da
graça, a imperatriz Helena - que acabara de obter por suas maternais preces o
esplêndido milagre da Ponte Mílvio e a impressionante conversão de seu filho
Constantino, com a conseqüente liberdade para o Cristianismo (28 de outubro de
312) - decidiu empreender uma longa viagem até Jerusalém, no intuito de
descobrir a verdadeira Cruz de Nosso Senhor. Santa Helena penetrava intimamente
no significado dos mistérios: aquela cruz luminosa que brilhara nos céus,
circundada pelos dizeres In hoc signo vinces (Com este sinal vencerás), ante o
olhar maravilhado do jovem César, não era uma clara manifestação dos desígnios
da Providência, prenunciando um triunfal ressurgimento da Igreja, por meio do
escândalo da cruz?
Buscar a Cruz era empresa árdua e
difícil. Não, porém, para o caráter enérgico da velha imperatriz que não se
abatera com os azares da fortuna nem com as duras provações da vida. Após
algumas semanas de penoso trabalho e de muita terra removida, durante as quais
Helena alentou com seu ânimo e suas orações os numerosos operários, foram
encontradas num fosso, em meio ao espanto e à comoção geral, três cruzes!
Apresentava-se, então, uma
perplexidade: como reconhecer o Lenho sagrado sobre o qual o Redentor padecera
sua dolorosa agonia, banhando- o com as últimas gotas de Sangue? Instado por
Helena, São Macário, Patriarca de Jerusalém, logo acudiu em seu auxílio. Reuniu
o povo e orou fervorosamente, suplicando ao Senhor uma intervenção que
esclarecesse os fiéis, de forma evidente. Mandou em seguida trazer uma pobre
mulher que se achava desenganada pelos médicos e prestes a morrer. Em contato
com as duas primeiras cruzes, a moribunda permaneceu insensível; mas, ao tocar
a terceira, levantou- se logo, completamente curada, louvando a Deus entre os
gritos de alegria da multidão entusiasmada.
A notícia do prodígio espalhou-se
com rapidez por todo o mundo cristão. Deu-se início, assim, a uma grande
devoção às relíquias da Paixão.
Ao retornar de sua peregrinação,
após erigir várias igrejas em honra da Paixão do Senhor, a virtuosa imperatriz
levou consigo para a Cidade Eterna um pedaço considerável da Santa Cruz,
conservando-se em Jerusalém a parte mais importante. Trouxe também os cinco
cravos que encontrara na mesma ocasião, e os deu de presente a seu filho
Constantino, o qual mandou colocar um deles na armação do diadema imperial.
Talvez esteja esse piedoso gesto na origem do belo costume de encimar com uma
cruz as coroas dos soberanos católicos.
Entrada triunfal da Santa Cruz em
Jerusalém
Três séculos após esses
admiráveis acontecimentos, Cosroes II, rei da Pérsia, saqueou a Cidade Santa,
matou grande número de cristãos e apoderou- se do precioso Madeiro, levando- o
entre as muitas riquezas que compunham seus despojos de guerra.
Grande foi a consternação
daqueles fiéis do Oriente, ao saberem estar o mais inestimável de seus tesouros
em poder de idólatras. O imperador Heráclio iniciou então uma campanha para
recuperá-lo, o que conseguiu após quinze longos anos de esforços e aventuras.
Finalmente, chegava Heráclio diante de Jerusalém, dando graças ao Senhor pela
vitória alcançada.
Organizou-se uma grande
cerimônia, com a maior solenidade e pompa possíveis. De todas as partes
acorriam os fiéis para venerar a relíquia felizmente recuperada. Em companhia
do patriarca Zacarias e rodeado dos grandes de sua corte, de incontáveis
clérigos e de uma fervorosa multidão, o imperador carregou sobre seus ombros a
verdadeira Cruz, dispondose a entrar na cidade pela porta que conduz ao
Calvário. Mas ao chegar diante dela ficou subitamente imóvel, sentindo-se
incapaz de avançar um passo sequer. Zacarias, que caminhava a seu lado, inclinou-se
para ele e lhe fez ver que a púrpura imperial e suas suntuosas vestes não
estavam em conformidade com o exemplo de humildade de Jesus, o qual carregara a
sua Cruz às costas, por aquelas mesmas ruas, todo chagado e coberto de
opróbrios. Ouvindo isto, Heráclio depôs as insígnias reais e a coroa de ouro.
Coberto de saco e descalço, continuou sem dificuldade a piedosa procissão. A
Cruz foi triunfalmente restituída ao patriarca Zacarias, em meio às aclamações
de júbilo da multidão enlevada e reverente.
O tempo confundiu a data dos dois
acontecimentos: a descoberta da Cruz pela imperatriz Santa Helena e o resgate
desta pelo augusto Heráclio. Mas em todo o Ocidente cristão, há séculos,
celebra-se no dia 3 de maio a descoberta do sagrado Lenho e a 14 de setembro a
sua Exaltação.
A Cruz, sinal de salvação
Pouco a pouco, por entre as
obscuras ruínas do paganismo podre e decadente, surgia um mundo novo, todo ele
"cruciforme", banhado pela luz pura e coruscante das doutrinas do
Evangelho, fazendo sentir de modo suave e misterioso a dulcis praesentia
d'Aquele que, no alto da Cruz, com o divino rosto coberto de escarros e
feridas, deixara escapar de seus chagados lábios o brado lancinante que haveria
de ecoar pelos céus da História: "Meu Deus, meu Deus, por que Me abandonastes?"
(Mc 15, 34). Agora, porém, uma inefável nota de paz e de júbilo, decorrente de
um forte imponderável de vitória, impregnava o progressivo desenvolvimento da
Esposa Mística de Cristo.
A Cruz passou a ser o centro da
espiritualidade católica, o sinal distintivo dos seguidores de Cristo, o ponto
para o qual convergem todas as aspirações, todos os amores, toda a ternura e o
respeito da alma verdadeiramente cristã.
Por toda parte o nobre símbolo da
Redenção projeta sua sombra protetora, lembrando-nos as dores suportadas com
infinita paciência pelo Homem- Deus em favor da pobre humanidade mergulhada nas
trevas do erro, do pecado e da morte, ao mesmo tempo que transmite a muda -
porém, quão eloquente! - mensagem de esperança: "O Bem vencerá! Eu
colocarei teus adversários como escabelo de teus pés" .
Com inspiradas palavras, exclama
Santo André de Creta: "Se não houvesse a cruz, Cristo não seria
crucificado. Se não houvesse a cruz, a vida não seria pregada no lenho com
cravos. Se a vida não tivesse sido cravada, não brotariam do lado as fontes da
imortalidade, o sangue e a água, que lavam o mundo. Não teria sido rasgado o
documento do pecado, não teríamos sido declarados livres, não teríamos provado
da árvore da vida, não se teria aberto o Paraíso. Se não houvesse a cruz, a
morte não teria sido vencida e não teria sido derrotado o inferno.
"É, portanto, grande e
preciosa a cruz. Grande sim, porque por ela grandes bens se tornaram realidade;
e tanto maiores quanto, pelos milagres e sofrimentos de Cristo, mais excelentes
quinhões serão distribuídos. Preciosa, também, porque a cruz é paixão e vitória
de Deus: paixão, pela morte voluntária nesta mesma paixão; e vitória porque o
diabo é ferido e com ele a morte é vencida. Assim, arrebentadas as prisões dos
infernos, a cruz também se tornou a comum salvação de todo o mundo."
Essa cruz, vemo-la ornar
ricamente as coroas dos monarcas, brilhar com esplendor no peito dos bispos, presidir
gloriosa as solenes liturgias; vemo-la elevada sobre as torres dos templos -
quer de imponentes basílicas e imensas catedrais, quer das mais modestas e
desconhecidas capelas e oratórios -, arvorada nas bandeiras militares, plantada
no meio de silenciosos claustros; vemo-la ainda agitada pelas mãos incansáveis
do missionário, carregada sobre os fatigados ombros do penitente, osculada
pelos lábios trêmulos do moribundo... Em seu louvor, canta a Igreja no ofício
da Semana Santa, este belíssimo hino:
Ó Cruz fiel, és a árvore
Mais nobre em meio às demais,
Que selva alguma produz
Com flor e frutos iguais.
Ó lenho e cravos tão doces,
Um doce peso levais. (...)
Só tu, ó Cruz, mereceste
Suster o preço do mundo
E preparar para o náufrago
m porto em mar tão profundo.
Quis o Cordeiro imolado
Banhar-te em sangue fecundo.
Uma só Cruz! Entretanto, no
Calvário havia três. Sim, uma só, porque daqueles três condenados, um só era
Inocente! Nunca passou pela mente de ninguém a idéia de levantar uma segunda
cruz, apesar de ter sido São Dimas canonizado em vida pela própria voz do
Salvador. Nunca, porque somente o sangue sem mácula é merecedor de veneração,
assim como adorado só pode ser o de Deus. Uma só atraiu todos os povos, uma só
marcou os tempos e a eternidade!
Unamo-nos, na adoração da Santa
Cruz, Àquela que estava de pé, venerando seu Filho, naquele instrumento de
suplício: Stabat Mater dolorosa juxta crucem lacrimosa. Estejamos pois, cheios
de esperança, recolhendo também as puríssimas lágrimas de Nossa Senhora, que
são para nós penhor de confiança e de certeza de perdão.
(Revista Arautos do Evangelho,
Set/2006, n. 57, p. 17 à 23)